sábado, 15 de maio de 2010

Romeu e Julieta... William Shakespeare

ATO II, CENA II
Jardim de Capuleto
ROMEU – Só se ri das cicatrizes aquele que nunca sentiu uma ferida. (Julieta aparece à janela) Mas… devagarinho! Qual é a luz que brilha através daquela janela? É o oriente, e Julieta é o Sol. Ergue-te, ó Sol resplandecente, e mata a Lua invejosa, que já está fraca e pálida de dor ao ver que tu, sua sacerdotisa, és muito mais bela do que ela própria. Não queiras mais ser sua sacerdotisa, já que tão invejosa é! As roupagens de vestal são doentias e lívidas, e somente os loucos as usam. Deita-as fora! Esta é a minha dama! Oh, eis o meu amor! Se ela o pudesse saber! Está a falar!... Não, não diz nada; mas isso que importa? O seu olhar é que fala e eu vou responder-lhe… Sou ousado de mais; não é para mim que ela fala. Duas das mais belas estrelas de todo o firmamento, quando têm alguma coisa a fazer, pedem aos olhos dela que brilhem nas suas esferas até que elas voltem. Oh! Se os seus olhos estivessem no firmamento e as estrelas no seu rosto! O esplendor da sua face envergonharia as estrelas do mesmo modo que a luz do dia faria envergonhar uma lâmpada. Se os seus olhos estivessem no Céu, lançariam, através das regiões etéreas, raios de tal esplendor que as aves cantariam, esquecendo que era noite. Vede como ela encosta a face à sua mão. Oh! Quem me dera ser a luva dessa mão, para poder tocar a sua face.

JULIETA – Ai de mim!

ROMEU – Está a falar… Oh! Continua, anjo resplandecente! Porque esta noite tu brilhas tão esplendorosamente sobre a minha cabeça como um alado mensageiro do Céu perante o olhar extasiado dos mortais, que escondem a íris nas pálpebras ao inclinarem-se para o contemplar quando ele perpassa por entre as nuvens indolentes e navega no seio do ar.

JULIETA – Oh! Romeu, Romeu! Mas porque és tu Romeu? Renega o teu pai, o teu nome; ou, se o não quiseres fazer, jura apenas que me amas e deixarei eu de ser uma Capuleto.

ROMEU – (à parte) – Deverei eu continuar a ouvi-la, ou responder-lhe?

JULIETA – É apenas o teu nome que é meu inimigo; tu és tu mesmo, e não um Montecchio. E que é Montecchio? Não é uma mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer outra parte que pertença a um homem. Oh! Sê qualquer outro nome! O que é que existe num nome? Aquilo a que nós chamamos rosa teria o mesmo perfume embora lhe déssemos outro nome! Assim, Romeu, ainda que não se chamasse Romeu, conservaria a mesma perfeição que agora possui. Romeu, renuncia ao teu nome, e em vez dele, que não faz parte de ti mesmo, apodera-te de mim!

ROMEU – Aceito. Chama-me apenas teu amor, e far-me-ei de novo baptizar. De ora avante nunca mais serei Romeu.

JULIETA – Quem és tu, que assim protegido pela noite, vens surpreender o meu segredo?

ROMEU – Eu não sei que nome hei-de pronunciar para te dizer quem sou. O meu nome, querida santa, eu próprio o odeio, por ser para ti um inimigo. Se eu o tivesse escrito, rasgá-lo-ia.

JULIETA – Os meus ouvidos não escutaram uma centena de palavras pronunciadas por esta voz, e contudo reconheço-a. Não és tu Romeu, e Montecchio?

ROMEU – Nem uma coisa nem outra, gentil donzela, se ambas te desagradam.

JULIETA – Dize-me: como viestes tu até aqui e para quê? Os muros do jardim são altos e difíceis de escalar; e este lugar será para ti a morte se algum dos meus parentes te descobre aqui.

ROMEU – Transpus estes muros com as leves asas do amor, porque não são as barreiras de pedra que o podem embaraçar; e o que o amor tem possibilidades de fazer ousa logo tentá-lo! Por isso mesmo, não são os teus parentes que me servirão de obstáculo.

JULIETA – Se eles te vêem, matar-te-ão.

ROMEU – Ai! Há mais perigo nos teus olhos do que em vinte das suas espadas. Basta que me olhes com ternura e ficarei couraçado contra a sua inimizade.

JULIETA – Por nada deste mundo eu queria que te vissem aqui.

ROMEU – O manto da noite oculta-me aos olhos deles. Mas, se tu me não amas, que importa que me encontrem? Seria melhor que o ódio deles pusesse fim à minha vida do que a morte tardasse faltando-me o teu amor.

JULIETA – Quem te ensinou este caminho?

ROMEU – O amor encorajou as minhas pesquisas. Deu-me o seu conselho e eu dei-lhe os meus olhos. Não sou piloto, e contudo, se estivesse afastada nessa extensiva praia que o mar mais longínquo banha, aventurar-me-ia a ir em busca de um tal tesouro.

JULIETA – Tu sabes que a máscara da noite vela o meu rosto, pois, se assim não fosse, verias um rubor virginal tingir-me as faces, pelo que me ouviste pronunciar há pouco. Bem quisera eu guardar as conveniências e negar o que disse; mas adeus conveniências! Tu amas-me? Eu sei que vais dizer que sim, e acreditarei na tua palavra; mas, se jurasses, podias trair o juramento; dizem que Júpiter se ri dos perjúrios dos amantes. Oh, querido Romeu! Se gostas de mim, dize-mo lealmente; mas, se pensas que fui muito fácil de conquistar, franzirei as sobrancelhas, serei cruel e dir-te-ei: “Não!”, para te dar ensejo a que me faças a corte. Doutro modo nem por todo o mundo o farei. A verdade, belo Montecchio, é que estou apaixonada, e por isso talvez julgues leviana a minha conduta; mas acredita, meu senhor, que me hei-de mostrar mais fiel do que aquelas que sabem melhor afectar reserva. Confesso que teria sido mais reservada se tu não tivesses surpreendido há pouco a confissão apaixonada do meu amor. Perdoa-me, pois, e não atribuas a um amor leviano esta fraqueza que a noite escura te permitiu descobrir.

ROMEU – Senhora, juro pela Lua sagrada, que coroa de prata os cimos de todas as árvores de fruto…

JULIETA – Oh! Não jures pela Lua, essa Lua inconstante que todos os meses muda de figura, ao rodar na sua órbita. Tenho medo de que o teu amor se torne tão inconstante como ela…

ROMEU – Porque hei-de então jurar?

JULIETA – Não jures por coisa alguma. Ou, se quiseres, jura pela tua graciosa pessoa, que é o deus da minha idolatria, e eu acreditar-te-ei.

ROMEU – Se o amor profundo do meu peito…

JULIETA – Bem, não jures. Embora a minha alegria de te ver seja grande, não sinto alegria alguma nesta noite com o teu juramento. É demasiado brusco, demasiado imprevisto e repentino, demasiado semelhante ao relâmpago, que desaparece antes que se possa dizer: “Ele brilha!”. Boa noite, querido! Este amor em botão, amadurecido pela brisa do Estio, talvez se transforme em flor esplêndida no nosso próximo encontro. Boa noite! Oxalá que a paz e calma deliciosas que enchem o meu peito possam também encher o teu coração.

ROMEU – Oh! Vais-me deixar assim, sem me concederes mais nada?

JULIETA – Que mais queres tu que te conceda esta noite?

ROMEU – Que troques pelo meu o juramento fiel do teu amor.

JULIETA – Dei-te o meu amor antes que tu mo pedisses; e contudo queria tê-lo ainda.

ROMEU – Querias tirar-mo? E para quê, meu amor?

JULIETA – Só para ser generosa e dar-te outra vez. E contudo eu só desejo o que já tenho: a minha generosidade é tão ilimitada como o mar, e tão profundo como este é também o meu amor: quanto mais te dou, tanto mais me fica, porque uma e outro são infinitos. (A ama chama de dentro) Ouço ruído lá dentro. Adeus, meu querido amor. – Já lá vou, ama. – Sê fiel, querido Montecchio. Espera só um momento, que eu volto já. (Sai da janela)

ROMEU – Oh! Noite abençoada, bendita noite! Tenho medo de que, por ser de noite, tudo isto seja um sonho, demasiada e deliciosamente adulador para ser real.

(Julieta volta de novo)

JULIETA – Três palavras só querido Romeu, e boa noite. Se a intenção do teu amor é honesta, e tem por fim o casamento, faz-me saber, pela pessoa que eu te hei-de mandar amanhã, o lugar e a hora em que se há-de efectuar a cerimonia, e eu deporei a teus pés todo o meu destino e seguir-te-ei, meu senhor, através de todo o mundo.

AMA (de dentro) – Menina!

JULIETA – Vou já. – Mas se as tuas intenções não são puras, suplico-te…

AMA (de dentro) – Ó menina!

JULIETA – É só um instante; vou já… - suplico-te que acabes com os teus galanteios e me deixes entregue à minha dor. Amanhã mandarei.

ROMEU – Assim se salve a minha alma…

JULIETA – Mil vezes boa noite. (Sai da janela)

ROMEU – Noite mil vezes má, desde que lhe falte a tua luz. O amor corre para amor como os rapazes ao deixarem os livros, mas afasta-se dele como o olhar triste como o dos rapazes que vão para a escola. (Retira-se)

JULIETA (aparecendo de novo à janela) – Pst! Romeu, pst! Oh! Quem me dera ter a voz do falcoeiro para fazer voltar atrás este gentil açor! Mas a escravidão é rouca e não pode falar alto. De contrário faria estremecer a caverna onde Eco dorme e a sua voz aérea tornar-se-ia mais rouca do que a minha, tantas vezes lhe faria repetir o nome do meu Romeu.

ROMEU – É a minha alma que chama pelo meu nome. Que som argentino tem de noite a voz dos amantes! É a música mais suave que os ouvidos podem escutar!

JULIETA – Romeu!

ROMEU – Meu amor!

JULIETA – A que horas te posso mandar procurar amanhã?

ROMEU – Às nove horas.

JULIETA – Não faltarei. Daqui até lá vão vinte anos. Já me esqueci para que te chamei.

ROMEU – Deixa-me ficar aqui até que tu te lembres outra vez.

JULIETA – E eu esquecê-lo-ei, para que tu fiques sempre aí, não me lembrando senão de quanto eu adoro a tua companhia.

ROMEU – E eu ficarei aqui, para que tu continues a esquecer-te, e esquecerei qualquer outra habitação a não ser esta.

JULIETA – Já é quase manhã. Quisera que te tivesses ido, mas que não te afastasses mais do que a avezita – pobre prisioneira, amarrada aos grilhões – que uma criança travessa deixa, por uns momentos, fugir da sua mão, e que, com o fio de seda, depressa atrai a si de novo, porque lhe quer demasiadamente para não ter ciúmes da sua liberdade.

ROMEU – Eu, eu quisera ser a tua avezita.

JULIETA – Também eu o queria, meu amor, mas eu matar-te-ia à força de carinhos. Boa noite! Boa noite! A despedida é tão doce tristeza que continuarei a dizer “boa noite” até que seja de manhã. (Sai)

ROMEU – Que o sono desça aos teus olhos e a paz ao teu coração. Bem quisera eu ser sono e paz para tão deliciosamente repousar. Vou daqui para a cela do meu pai espiritual para lhe implorar o seu auxílio e confiar-lhe a minha ventura. (Sai)

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